Recebi um antigo e adorável presente de família. Duas formas de bolo da casa da minha avó, mas que vieram provavelmente da casa da minha bisavó. De alumínio fino e já levemente amassadinhas, desgastadas pelo tempo e pelo uso, as duas vieram pelas mãos de minha mãe. "Você faz bolos e conta histórias, vai gostar de ficar com elas". Sim, eu gostei muito, pensei. Mas não foi só porque me serviriam como utensílio de trabalho que apreciei muitíssimo este inusitado presente. Gostei porque são objetos delicados e carregados de história; eu posso quase sentir uma vida toda exalando de cada uma delas. Quantos bolos foram feitos ali? Quanto do passado havia por lá? Não saberia mensurar a quantidade de ovos que passaram por entre elas e de que maneira estes bolos foram batidos. Minha bisa deve ter batido usando a força mecânica de suas delicadas mãos, já minha avó usou certamente aquelas batedeiras bem antigas que pouco são usadas ultimamente. De que falavam ao bater inúmeras receitas e as preencher com suas massas robustas e cheirosas? Quais eram as questões mais importantes e comentadas da época? Estas formas sobreviveram ao tempo, porque foram guardadas com carinho, porque ninguém um dia as olhou enviesado e pensou "vou doá-las ou trocá-las por novas". Não. Sobreviveram até os dias de hoje e estão agora em minha cozinha porque são massa!
Ao chegarem aqui em casa, fui logo bater um bolo. Não podia deixar de estreá-las, se é que posso usar esta palavra, já que devem ter sido estreadas, realmente, lá pelos anos de 1900, quando a jovem Cleonice (minha bisavó) as adquiriu em uma lojinha qualquer de bairro. Ou talvez tenha ganhado do meu bisavô... será? Pode ter sido também um presente de casamento ou como parte do seu enxoval. Naquela época, presumo, mocinhas de família, donas de casa ou senhoras do lar, deveriam saber bater um bonito bolo... Hoje não é mais assim e as mulheres conquistaram inúmeros papeis que são realizados de forma competente por elas, por nós. Hoje ainda sabem bater seus bolos, mas também pegam seus laptops e vão para o escritório, pegam suas bolsas e vão trabalhar, deixam filhos na escola, arrumam a casa, preocupam-se com o almoço e, ainda assim, dizem "até mais tarde, vou pro serviço"! Porreta a história de vida de cada mulher e das mulheres em geral que ganharam o mundo, pouco a pouco, sem deixar que o mundo as brecasse, demonstrando capacidades inúmeras, tantas quantas cada uma se permitiu. Sim, mais do que o mundo abrir suas portas, cada uma de nós abriu as suas próprias portas para ser e fazer, ir para onde a nossa imaginação nos levar e, vejam só vocês, quanta imaginação podemos ter!
E aquelas formas de bolo tão antigas, belas e femininas para a época, hoje, posso vê-las e imaginá-las em qualquer mão, elas não têm mais lugar definido em minha cozinha. Posso usá-las em meu dia a dia, usar para o meu trabalho, enfeitar uma parede, emprestar para alguém ou, simplesmente, guardar no armário. Mas uma coisa é certa, não irei olhá-las enviesado ou descartá-las pelo uso exaustivo que tiveram. Não. Talvez algum dia, em um tempo longínquo, meus descendentes irão olhá-las, também com carinho, pensando no tanto que serviram à família em momentos de confraternização e de união. Imaginem só se elas - as formas - soubessem que haveriam de permanecer até os dias de hoje... nesta época em que seus lindos bolos não são repartidos por muitos, numa época em que as pessoas não se aconchegam em gostosas aglomerações e que as festas, aquelas regadas a bolos, Petit Fours e chás, são apenas para poucos, somente para aqueles que o seu coração aproximou pelos laços de família. Pois é, quem diria... Isso, porém, esses tempos que estamos todos vivendo, tempos de recolhimento e convivência, me parecem tão, tão como antigamente...
E assim termina este pequeno texto contando um singelo momento chamado... Hygge!
Luciana Corrêa – Mixing Things with Love
OBS: a receita do bolo acima está no post Pelo campo das Oliveiras. Confere lá. É deliciosa!
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